sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Sepulcros

Um homem apêia de seu cavalo na curva da estrada. No céu, sol e lua ainda guerreiam em sua luta diária em uma guerra de armas e de horas que todos sabem o desfecho diante as armas. Fazem do céu turbulento e avermelhado o divino espetáculo aos olhos dos bêbados no palco celeste de um teatro que alguns acordam pra assistir e outros assistem por que não dormiram ainda.
Seu José Boiadeiro nem reparou na passagem do homem. Estava acordando a boiada gritando: Êh...boi! Êh...boi! Êh ...boi!
E a gente do lugar é boi sem chocalho.
Sou de Bento Pereira, sou daqui.
Me sento num tronco de carnaúba caído enrolando meu cigarro de palha e arreparo no homem que passa andando, puxando seu cavalo cansado. Seus olhos são profundos e tristes... sua cara empoeirada. Tem um chapéu na mão, sobre o peito, como rezando. Passa sem olhar pros lados.
Dona Maria de Seu Bernardo faz tapiocas no fogão de lenha e alguém chega em casa com um tejo da noite passada.
Ninguém olha para o homem cabisbaixo, andarilho. Em sua cintura... um punhal esquecido e anda como se tivesse o peso de uma lembrança. Sei... porque também ando assim.
Se me olhasse, lhe perguntaria pra onde está indo, pois anda feito bicho sem destino. Sei... porque um dia andei também. Mas parei onde nasci e onde morri várias vezes.
O homem pára na porta do cemitério e se benze. Olha por algum tempo, põe o chapéu na cabeça e prossegue. Seu João Coveiro conversa com os mortos e nem percebe.
Se continuar por esse caminho, no seu andado em desalinho, talvez encontre o mar. Muitos procuram o mar. Sei disso... porque também procurei.
O homem pára na bodega de Seu Pedro e pede um trago... e pede outro... e mais outro... e mais outro... e pede água para o seu cavalo.
– “Água é bicho raro... ainda mais para um cavalo”.
O homem disse: – “Eu pago”, pondo o punhal sobre o balcão.
Seu Pedro aperriou-se e o homem disse:
– “Calma, seu moço... num se avexe, não... guarde o punhal... num carece mais da água, não.”
Sei disso... porque um dia também tive um punhal e troquei com Deus pela água de um rio, onde me banhei em desvario e chorei minhas bestagens... no Rio Palhano que é bem ali, no dia em que vim do mar.
O homem sai em passos largos puxando seu cavalo cansado. Na outra curva da estrada, um grito e um galope.
Seu Pedro atravessa a piçarra trazendo uma garrafa e me oferece um gole. Tomo meu trago diário. Seu Pedro bebe em goles enormes e oferece para qualquer um que sofre. O cheiro da aguardente vai juntando boi e gente, e surgem casos e sepulcros. Cada qual tem sua dor.

Dez dias antes, em Olinda, Pernambuco, uma mulher foi encontrada morta e, ao seu lado, uma carta de amor.

Sei disso... porque sei.


Alan Mendonça

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