quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Carta do Teatro das Marias sobre o embargo de funcionamento pela SEMAM


A atriz, bailarina e coreógrafa Valéria Pinheiro, coordenadora do ponto de cultura que funciona no Teatro das Marias, bate um raio-x das dificuldades que passa o fazer cultura na cidade de Fortaleza num apelo narrado nesta carta aberta. As políticas culturais públicas, repletas de contradição, não conseguem acompanhar as necessidades do crescimento em quantidade e qualidade das produções culturais na capital cearense.




"Prezados amigos,

Estive calada por alguns dias tentando organizar um pensamento que coubesse minha indignação pelas ações que vêm acontecendo na principal área cultural de Fortaleza (Centro Dragão do Mar e entorno).

A partir de uma matéria no Jornal Nacional (TV Globo) onde o teor da materia eram os camelôs e ambulantes de bebidas no entorno do dragão do Mar, que segundo a matéria estariam vendendo de forma ilicita bebidas alcoolicas pra jovens menores, além de estarem com sistema de som em níveis acima do permitido na região, várias ações das entidades públicas como a SEMAM (Secretaria do Meio Ambiente de Fortaleza, cujo Secretário é o Sr. Deodato) começaram um "arrastão" nos arredores do Dragão, levando não só os ilícitos como também Casas e espaços culturais que atuam dentro das leis, pagando seus impostos e agenciando na verdade a verdadeira circulação de cultura nesse arredor do Dragão, fazendo dessa área a de maior concentração de possibilidades de difusão artistica de Fortaleza.

A SEMAM chegou a embargar o Centro Dragão do Mar proibindo de acontecer espetaculos ou shows no palco sob a Passarela, se esse orgão chegou a esse nível, ter EMBARGADO o Café Teatro das Marias não lhe parece nem um pouco uma ação ditadora, incipiente, mesmo sabendo que nós, gestores do Teatro das Marias, nunca havíamos antes recebido qualquer notificação de irregularidade (o educacional do Sr. Deodato me parece precário), até mesmo o maior dos deliquantes tem direito a defesa, nós do Teatro das Marias não tivemos, fomos pegos pelas "costas". Não nos deixaram defesa.

Recebíamos numa terça-feira (20 de outubro as 22:30) no nosso espaço a VII Bienal Internacional de Dança do Estado do Ceará (evento que tem parceria institucional com os governos municipal, estadual e federal), com a participação de vários representantes de instancias importantes da cultura no nosso país, como Funarte, entidades acadêmicas com seus representantes, articuladores culturais de vários estados do Brasil assim como vários artistas de paises como Alemanha.

Resolvemos parar o show, não que eu não pudesse ir presa, mas estava responsavel pelo som de um amigo (Bebeco) que muito em parceria com nosso movimento de coletivos no Teatro das Marias esteve atuando desde o sábado, quando iniciamos o projeto, na sua terceira edição PRO DIA NASCER FELIZ.

Muita revolta e indignação dos companheiros ali presentes, mas com a calma e força do espaço me coloquei de forma passiva diante dos artistas, pedi desculpas e lhes pedi que fizéssemos o show no gogo e com os instrumentos todos unpluggeds, foi o que fizemos, e aos poucos em torno de 130 pessoas sentaram-se no chão e muito respeitosamente ouviram o show na voz e instrumentos de cordas e harmonicos ali presentes. Confesso que foi lindo, único.
Mas não me conformei com a atuação da SEMAM, ao acabar o show dos colegas e depois que todos sairam me vi sozinha no teatro e pude enfim, chorar.
Um choro de iindignação, de medo, medo de estarmos de volta aos anos da ditadura, onde toda manifestação cultural foi inibida por um sistema ditador, medo de estar diante de um municipio que não tem qualquer entendimento de ações culturais como aquela que acabara de ser manchada com tanta violência

E pensei: "meu Deus, como uma mãe ensina a um filho, se não chamando primeiro a atenção, ensinando, para so se necessário for, castigar? Pois bem, não tive a chance de aprender com a SEMAM, fui logo castigada, castigada por agenciar um encontro diário com mais de 700 pessoas ávidas por cultura, por encontros, por frestas de humanidade que parece não mais existir nesta gestão municipal, castigada por abrir minhas portas as manifestações de artistas que trabalham em coletivo e num sistema de trocas de fazeres, pois que fique claro, nenhum de nós envolvidos no projeto PRO DIA NASCER FELIZ, recebeu qualquer apoio financeiro pra de forma feliz , comprometida, disciplinada e muito talentosa mostrarmos nossa arte, participamos por entender que está nessa troca de saber e fazer artistico a sedimentação de nossa politica de existência artistica, por entender que espaços como Marias e Bienal Internacional de Dança são instâncias importantes de se fazer parceria, de proporcionar trocas e apontar pra um futuro, anunciar um caminho.....

E agora?

Estamos de portas fechadas, somos UM PONTO DE CULTURA FEDERAL, que abre suas portas ao CAPR, entidade ligada a SEMAS (Secretaria de Assistencia Social de Fortaleza) que trabalha com população de rua e usuários de drogas, numa parceria que em breve completará um ano, numa parceria que navega nas possibilidades de mudanças, de agenciamento de encontros desse elenco com um mundo ludico, onde a droga ali injetada é a endorfina do corpo, onde os sons das balas e alvoroços das ruas dão lugares aos tambores, onde as lutas se transformam em dança e capoeira, onde a voz de forma poetizada é cantada e onde os limites são ultrapassados ou pelo trapezio, tecido ou acrobacia ou mesmo pela rede da internet que os conecta com o mundo os fazendo visíveis.

Fecharam nossas portas, e pra que abramos de novo nos cobram um projeto acustico sofisticado (que custa alguns mil reais e com idicações de engenheiros dados por eles SEMAM, com uma lista de numeros de celulares impressa, vejam bem....) pra receber nossos tambores, quando sequer temos dinheiro pra mantermos o aluguel ou as despesas fixas (os editais que nos garantiam essa ajuda estão em atraso desde de maio de 2009) como trasformar nossa residência de formação artistica num espaço possivel de atuar com dignidade?

A moeda que circula no Café Teatro das Marias é o scambo (nosso UBUNTU) que funciona com trocas e parcerias de fazeres, saberes e sonhos e portanto não tem poder de compra de um projeto acustico, pelo menos por enquanto, e assim temos conseguido nos manter vivos e potentes todo esse tempo.

No entanto nós temos um compromisso com o governo do estado e governo federal de fazermos funcionar nosso ponto de cultura com verba ganha por edital cujas rubricas garantem o pagamento dos oficineiros e equipamentos de multimidia. Um paradoxo isso tudo naõ eh? Ganhamos de uma instancia governamental a possibilidade de funcionarmos com nossos fazeres, onde entre eles está uma lutheria de tambores e percussão, nossa dança é calcada no sapateado, portanto tambem percussiva, e nossa musica é também som, como não fazer som meu Deus?

Temos alvará de funcionamento, temos registro sanitário, pagamos nosso ISS, INSS e todos os impostos que nos são cobrados pra existirmos com dignidade, mas não temos um projeto acustico, eis o problema. E será que precisamos de um projeto acustico? Será se cada espaço cultural ou ponto de cultura desse país pra que exista precisará de um projeto acustico? Será se cobrarão dos índios taperas ou do candomblé de mãe joana, ou do reizado do Mestre Pio também um projeto acustico em seus terreiros?

E o palco sob a passarela do Centro Cultural Dragão do Mar (nosso centro cultural de referência no Estado) também precisará de um projeto acustico?
Talvez precisemos de um projeto de cultura, na sua essencia, dentro de cada secretaria de governo, para que possam entender a força das manifestações e o quanto cada uma delas organiza seu povo o faz forte e pronto pra exercer com cidadania seu papel na sociedade.

Peço a ajuda de toda a sociedade civil deste país, para que em tempos em que os municipios, estado e nação pensam em um projeto cultural possam tambem pensar numa educação de base de entendimento do que é afinal de contas cultura, nós quando sociedade civil somos responsáveis por essa construção, pois que façamos nossa parte.

Vamos reabrir um dia desses nossas portas, e enquanto isso trabalharemos nas ruas, nas praças, nas esquinas de cada canto desta cidade fazendo nossa voz ecoar como vaqueiro que guia sua boiada sem medo de se perder, porque conhece com propriedade cada lugar dessa "manga" de meu deus onde quer fazer chegar sua boiada!
Que venham mais nesse comboio!

Um forte abraço em todos."

Valéria Pinheiro
artista cearense

Nenhum comentário: